Vivemos um tempo em que os sentimentos transbordam os muros das escolas. Não mais enclausurados nas entrelinhas da experiência pedagógica, os afetos hoje exigem escuta, presença e preparo. A educação socioemocional emerge, nesse contexto, como um chamado não apenas à inovação, mas à reintegração da dimensão humana no ato de educar.
Em um mundo marcado pela complexidade, pelo excesso de informações e pela constante transformação, habilidades como autorregulação, empatia, escuta ativa e responsabilidade social tornaram-se essenciais — não apenas para o bem-estar individual, mas para a manutenção de vínculos sociais e democráticos. A escola, antes tida como espaço exclusivo da razão e do conhecimento técnico, passa a ser interpelada por outra demanda: ensinar a viver junto, consigo e com o outro.
Educação socioemocional: um conceito em movimento
Embora o termo “educação socioemocional” ganhe força no discurso educacional contemporâneo, sua essência não é nova. Desde John Dewey, que defendia uma educação voltada para a experiência, à pedagogia do oprimido de Paulo Freire, que propunha uma prática educativa baseada no diálogo e na humanização, o aspecto emocional sempre esteve implicado na formação integral.
Contudo, nas últimas décadas, a formalização dessa dimensão ganhou corpo com estudos da psicologia positiva, da neurociência e da educação emocional, que revelaram que emoções e cognição caminham juntas. Pesquisadores como Daniel Goleman (1995), ao popularizar o conceito de inteligência emocional, trouxeram para o debate educacional a urgência de se trabalhar não apenas o “saber fazer”, mas também o “saber ser”.
Segundo o Collaborative for Academic, Social and Emotional Learning (CASEL), uma das principais instituições internacionais voltadas ao tema, o desenvolvimento socioemocional abrange cinco áreas centrais: autoconhecimento, autocontrole, consciência social, habilidades de relacionamento e tomada de decisões responsável. Essas competências, quando desenvolvidas desde os primeiros anos escolares, impactam diretamente o desempenho acadêmico, a saúde mental e a inserção social dos estudantes.
O panorama internacional: entre avanço e resistência
Em diversos países, a educação socioemocional já é entendida como pilar da formação básica. A Finlândia, por exemplo, integra competências emocionais ao currículo desde o início da vida escolar, articulando aprendizagem acadêmica com atividades de escuta, meditação, trabalho colaborativo e resolução de conflitos. No Canadá, a província de Ontário incluiu oficialmente a educação socioemocional nos currículos de 2017 em diante, focando no desenvolvimento de habilidades interpessoais, autoestima e empatia. Na Austrália, há programas amplamente disseminados como o MindMatters e KidsMatter, que promovem ambientes escolares emocionalmente saudáveis e inclusivos.
A pesquisa científica corrobora essas práticas. Um estudo de meta-análise publicado por Durlak et al. (2011), que avaliou mais de 270 mil estudantes em programas de aprendizagem socioemocional, apontou que os alunos que participaram dessas iniciativas apresentaram melhora significativa no desempenho acadêmico, redução de comportamentos agressivos e maior engajamento escolar.
Apesar desses avanços, a implementação da educação socioemocional encontra resistências importantes. Em alguns contextos, há receio de que o ensino de competências emocionais possa assumir um caráter moralizante ou ideológico, especialmente em tempos de polarização política. Outros críticos apontam para o risco de “psicologização da escola”, isto é, de reduzir questões sociais e estruturais a problemas de ordem individual ou emocional.
Essa tensão entre necessidade e receio coloca a educação socioemocional em um campo delicado: ora vista como solução para os desafios educacionais do século XXI, ora tratada com ceticismo e desconfiança.
O caso brasileiro: entre diretrizes e realidades
No Brasil, o reconhecimento institucional da educação socioemocional ocorreu de forma mais recente. A Base Nacional Comum Curricular (BNCC), homologada em 2017, incluiu o desenvolvimento de competências socioemocionais como parte da formação integral dos estudantes, sobretudo por meio da “dimensão socioemocional das competências gerais da educação básica”.
A BNCC destaca habilidades como resiliência, empatia, cooperação e autogestão, e propõe que essas competências sejam trabalhadas de forma transversal — ou seja, integradas às diferentes áreas do conhecimento e práticas pedagógicas.
No entanto, como apontam Silva e Morais (2020) em estudo publicado na Revista Brasileira de Educação, o desafio está na tradução dessa diretriz em prática pedagógica real. Muitos professores relatam falta de formação específica, sobrecarga de trabalho e insegurança ao lidar com temas emocionais em sala de aula. Além disso, o financiamento precário, a ausência de acompanhamento sistemático e a desvalorização da formação continuada impedem que as ações avancem com a profundidade necessária.
A realidade das escolas públicas brasileiras é marcada por heterogeneidade social, falta de estrutura e contextos de vulnerabilidade, o que torna ainda mais urgente — e desafiador — o desenvolvimento de uma abordagem humanizada e sensível às emoções.
A urgência dos afetos: entre ansiedade e pertencimento
A juventude contemporânea carrega cicatrizes emocionais que a escola não pode mais ignorar. Os índices de ansiedade, depressão e automutilação entre adolescentes cresceram nos últimos anos, agravados pela pandemia, pelo uso intensivo de redes sociais e pela precarização das relações familiares e comunitárias.
Estudos como o do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (2022) apontam que o suicídio entre jovens de 10 a 19 anos cresceu 45% em uma década. Diante de dados tão alarmantes, a escola precisa se posicionar não apenas como espaço de transmissão de conteúdos, mas como território de cuidado, escuta e construção de vínculos saudáveis.
Mais do que um programa ou uma atividade extracurricular, a educação socioemocional deve ser um ethos escolar, uma forma de organizar o cotidiano, a convivência e as decisões pedagógicas. Isso implica rever posturas hierárquicas, ampliar espaços de fala, reconhecer as emoções como linguagem legítima e promover experiências significativas de cooperação e autorreflexão.
A influência das emoções na aprendizagem: o que dizem as neurociências
Nos últimos anos, o avanço das neurociências tem oferecido novas lentes para compreender a relação entre emoção e aprendizado. Estudos do neurocientista Antonio Damasio mostram que não há decisões puramente racionais — todas são mediadas pelas emoções. O sistema límbico, responsável pelas respostas emocionais, influencia diretamente a atenção, a memória e a tomada de decisões.
Quando o aluno está ansioso, estressado ou com medo, seu cérebro ativa o chamado modo de sobrevivência, reduzindo a capacidade de concentração e aprendizado. Já em ambientes emocionalmente seguros, o cérebro libera substâncias como a dopamina e a oxitocina, que favorecem a curiosidade, o prazer de aprender e a colaboração.
Essas descobertas apontam para um caminho irrefutável: a qualidade emocional do ambiente escolar é tão importante quanto o conteúdo ensinado. Não basta revisar o currículo, é preciso revisar a cultura escolar.
O papel da formação docente: entre o saber técnico e o saber sensível
A maior parte dos professores brasileiros nunca teve, ao longo da sua formação inicial, disciplinas ou estágios voltados especificamente à educação emocional. Como consequência, muitos educadores relatam insegurança ao lidar com questões afetivas, conflitos interpessoais ou manifestações emocionais intensas dos alunos.
Isabel Parolin, psicopedagoga e pesquisadora da área de desenvolvimento humano, afirma que “não é possível educar emoções sem antes reconhecê-las em si”. Essa afirmação nos leva à constatação de que a formação do educador emocional começa com o autoconhecimento. Não basta saber teorizar sobre empatia ou resolução de conflitos — é preciso experimentar esses processos em primeira pessoa.
Iniciativas como oficinas de escuta, grupos de apoio entre docentes e momentos de autorreflexão podem ajudar a ampliar a consciência emocional dos educadores e fortalecer sua presença afetiva em sala de aula. A construção de um ambiente emocionalmente inteligente começa pelo adulto que conduz esse processo.
Caminhos possíveis: entre a ciência e o afeto
A educação socioemocional não é uma fórmula pronta — tampouco um modismo pedagógico. É uma construção contínua que exige reflexão, pesquisa, escuta e coragem institucional. Como afirmam Sara Paín e Wallon, é no corpo, no gesto, no afeto e na linguagem que se dá o processo de subjetivação. Educar emocionalmente, portanto, é permitir que o sujeito se reconheça como ser de desejo, de relação, de responsabilidade.
O psicólogo Lev Vygotsky já afirmava que o desenvolvimento humano é indissociável do contexto cultural e relacional. Trabalhar a dimensão emocional na escola, nesse sentido, é uma aposta na potência dos vínculos e no fortalecimento das redes de sentido que sustentam o aprendizado.
Algumas estratégias têm se mostrado eficazes na implementação da educação socioemocional:
- Formação continuada para professores, com espaços de escuta e autoconhecimento;
- Práticas pedagógicas ativas e colaborativas, que valorizem a escuta e o diálogo;
- Ambientes escolares seguros emocionalmente, onde o erro seja parte do processo de aprendizagem;
- Integração com a comunidade escolar, envolvendo famílias e gestores no desenvolvimento de uma cultura emocionalmente inteligente.
O que pulsa sob a superfície
A temperatura da educação socioemocional no Brasil e no mundo é morna — ora aquecida por experiências bem-sucedidas, ora esfriada por resistências políticas, ideológicas ou estruturais. Mas sob a superfície, pulsa uma demanda inegável por humanidade. Pulsa a necessidade de reconhecer o outro — e a si mesmo — como sujeito de afetos, histórias e possibilidades.
O futuro da educação será emocional — ou não será completo. E talvez a tarefa mais urgente seja essa: escutar o que ainda não foi dito, acolher o que ainda não foi olhado e ensinar o que ainda não foi sentido.
E quando a emoção se cala? A escuta como resistência
É necessário lembrar que nem toda emoção se expressa em palavras. Muitas vezes, o silêncio, o olhar baixo, o desinteresse repentino por atividades ou a agressividade são formas de linguagem emocional. A escuta, nesse contexto, exige sensibilidade para perceber o que não é dito, mas que se expressa no corpo, nos gestos, nos intervalos da fala.
Como propõe o educador Bernard Charlot, é preciso aprender a “ver o invisível” na educação — aquilo que não aparece nos boletins, mas que define profundamente o percurso escolar do sujeito. Uma escuta atenta e compassiva é, muitas vezes, a única ponte entre o sofrimento emocional e a possibilidade de ressignificação.
Professores que desenvolvem essa escuta são agentes de transformação silenciosa. Eles não apenas transmitem conteúdos — eles acolhem o humano em sua inteireza.